QUANDO O CANCELAMENTO É VIRTUAL, MAS O IMPACTO É NA VIDA REAL
A recente demissão do gerente de uma cafeteria após uma postagem do Padre Fábio de Melo escancara um problema grave de nossa época: a facilidade com que reputações são destruídas nas redes sociais, muitas vezes sem provas concretas ou direito à defesa. Em um mundo onde um vídeo viral, que assim se torna facilmente se quem posta é um "influencer" dos mais conhecidos, pode se tornar um tribunal implacável Por conta disso, pessoas tomam partido muitas vezes sem apurar os fatos, apenas pelo ídolo, ou por ser contra o atingido. Além disso, empresas e indivíduos agem por instinto de autopreservação, sacrificando a honra de alguém em nome da imagem pública. O resultado? Uma sociedade em que dinheiro, fama e influência valem mais do que a verdade e a dignidade humana.
A controvérsia começou durante uma visita do religioso à Cafeteria Havana, acompanhado de um amigo. Segundo relato de Fábio, o gerente agiu de forma ríspida ao recusar a venda de dois potes de doce de leite pelo valor exibido na gôndola. "Ele veio e falou alto, pra todo mundo ouvir: 'O preço é este. Quem quiser levar, que leve, não posso mudar no meu sistema'", relatou o padre em um vídeo publicado nas redes sociais.
Após o episódio, o gerente Jair Rosa, mesmo negando que os fatos teriam ocorrido desta forma e que nem teria conversado com o sacerdote, acabou desligado da empresa (veja vídeos abaixo).
Diante da grande repercussão do caso, que aliás deveria ser esperada pelo padre, ele voltou às redes para, primeiro, afirmar, confirmando a defesa de Jair, que o gerente não falou com ele e nem com o amigo, mas com os funcionários, de forma ríspida, após ser informado que o preço dos doces na gôndola não era o que seria cobrado, e apontou a motivação do vídeo como uma defesa da Lei do Consumidor (que de fato manda que o preço a ser pago é o que está informado na prateleira). "Lamento muito que ele tenha sido demitido, não sei o histórico dele, como ele liderava a loja. Só dei o testemunho que nenhum estabelecimento comercial está acima da Lei do Direito do Consumidor".
Fábio de Melo afirmou que não houve intenção de causar prejuízo ao funcionário, apenas de relatar o ocorrido. Mas aí está um dos problemas. Muitas vezes, não conhecemos a história de uma pessoa, o que ela passa no dia a dia, se está num momento bom ou ruim, mas não pensamos duas vezes antes de colocá-la em apuros por ter feito algo que nos desagrade, mesmo que nossa busca seja justa.
Porém, a correção não seria o mais indicado ao invés de uma execração pública? A correção, na vida real, não seria mais eficaz e interessante que toda essa bagunça do virtual? Claro que se mesmo assim o problema persistisse, talvez até se justificasse uma reclamação pública ou a busca por uma punição mais exemplar. E, acredite, para algumas pessoas, só quando o cancelamento vem ou a Justiça o pune é que suas condutas mudam.
E tem maneiras de se alertar a população sobre seus direitos e deixar o recado tácito a quem os viola, sem produzir julgamentos sobre pessoas ou locais? Sim! Expresse o problema, sem citar nomes. Até em matérias sobre crimes, muitas vezes se omite o nome do acusado ou investigado, justamente porque ele ainda não foi julgado ou condenado, a não ser quando o sujeito ou mulher represente perigo a alguém ou reiteradamente cometa os mesmos crimes. Assim deveria ser em qualquer situação.
Se avaliarmos bem, todo mundo literalmente se deu mal depois da postagem do padre, como acontece sempre que algo feito pela internet se reflete no exterior: O gerente teve que ir às redes para se defender após ser demitido e ter sua vida virada do avesso, o próprio padre passou a ser criticado e xingado, e sobrou até pro amigo do padre, que quieto estava e quieto ficou, mas passou a ser atacado nas redes.
E tem uma questão importante nisso tudo: Diante de uma acusação pública, a cafeteria optou por demitir o funcionário, possivelmente para evitar um desgaste maior à sua marca. Afinal, querem uma pessoa famosa fazendo propaganda positiva, não reclamações, não é? Mas quantas vezes essa decisão é tomada sem uma investigação justa? Quantas pessoas têm suas vidas arruinadas porque empresas, pressionadas pelo medo do cancelamento, preferem cortar laços em vez de defender um funcionário ou pelo menos permitir que ele se defenda até que se prove sua culpa ou inocência?
As redes sociais criaram um ambiente onde a indignação é instantânea e a punição, imediata. Não há tempo para reflexão, para ouvir os dois lados, para ponderar se a acusação tem fundamento. Basta um post inflamado de uma figura influente para que a máquina do julgamento público entre em ação, muitas vezes de forma irreversível. E o pior: muitas instituições, em vez de protegerem aqueles que estão sob seus cuidados, jogam-nos aos lobos para se protegerem e ao seu lucro (esse, sim, o único objetivo a ser buscado).
Se há algo mais cruel do que uma injustiça, é a covardia de quem poderia ajudar, mas escolhe o caminho mais fácil. Empresas deveriam ser espaços de responsabilidade social, onde colaboradores são apoiados em momentos de crise, não descartados ao primeiro sinal de polêmica. Mas, em uma era em que a reputação virtual vale mais que a ética, o que prevalece é a lógica perversa de que o poder e o status estão acima da honra.
E aqui pouco importa, neste momento, quem está certo ou está errado nos fatos narrados. Será que o Padre Fábio de Melo não tinha consciência do impacto que teria sua postagem na vida deste gerente? Ou isso pouco importa? Será que ao invés de criticá-lo diretamente em sua rede, não poderia, naquele momento mesmo, ter conversado com ele e dito exatamente o que afirmou sobre o preço na postagem que viralizou?
Enquanto isso, a única certeza que nos resta é que a internet segue sendo uma arena, onde acusações viram sentenças, onde a verdade é menos importante ou é secundária ao engajamento, e onde a vida de uma pessoa pode ser destruída em poucos cliques.
Padre Fábio de Melo é famoso, e vai continuar famoso depois disso tudo. O gerente, por sua vez, ficou conhecido de forma negativa, e se realmente agiu como dito pelo sacerdote, vai pensar duas vezes antes de repetir o erro em um novo emprego. Mas, a pergunta que fica é: Será que com essa história ele vai conseguir um novo emprego? E mais: Com essa internet que atira hoje e tudo fica registrado para futuras pesquisas, se conseguir, vai mantê-lo?
Até quando vamos permitir que a justiça seja substituída por curtidas e compartilhamentos?
São reflexões que todos devemos fazer.
Veja os vídeos da reclamação do padre e da resposta do gerente após ser demitido:
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